terça-feira, março 25, 2008

Eulália

Eram dez da noite e estava de novo sozinha em casa. Aos 83 anos de idade já não encontrava muitos dias como o de hoje: felizes. Nos últimos anos assistiu à partida dos amigos e familiares que lhe restavam. Mortes que a fizeram sofrer, que sentiu como sentiria a sua própria morte, mas acima de tudo que lhe lembravam a clausura que fora a sua vida conjugal por um lado, e a felicidade do seu trabalho como professora primária por outro. Trabalho a que uma reforma não ansiada a veio resgatar, havia já 18 anos (meu Deus, como o tempo passa!). Mas hoje foi um dia feliz, à parte estes laivos de nostalgia.
Ser velho é isto mesmo, já sabia há muito. Ser velho é ver morrer as outras crianças da nossa idade - levando consigo pedaços de um espelho partido - que somos nós (e a nossa memória) - que de tão fragmentado pelo tempo e pelas rugas, já não reflecte nada a não ser a poeira em que nos vamos tornando. Ser velho é ser feio outra vez. É depender da condescendência dos outros, ser menosprezado. Saber que o mundo ainda faz sentido mas que isso já pouco importa, que para os outros nos tornámos dementes. É cobrir a cabeça com o lençol e esquecer a vontade de chorar.

domingo, março 23, 2008

Largo da Memória

Explorando o Parque Florestal do Monsanto, vais tentando não te perder muito. O dia está absolutamente fantástico - dia 21 de Março, o dia que inaugura a Primavera. Procuras a tua refeição que demoras algum tempo a encontrar. E encontras felizmente, encontras a refeição perfeita para teu grande agrado. Mas o que há de relevante nisto? Que nos restaurantes onde paraste antes de encontrar o que te agradou, te sentiste deslocado. Te sentiste embaraçado perante a obcenidade de um preço que não queres pagar. Mas estás bem agora. Junto à Igreja da Memória onde estão os restos mortais de José Sebastião Carvalho de Melo.

Primavera

Tinhas planos para esta noite mas sairam-te furados. Ela desmarcou.
Já com o bichinho no corpo para sair, não podias ficar em casa que se te queimava o juízo. Compras uma espécie de jantar, e poisas numa das mesas da esplanada interior do forum. Ao teu lado, uma mesa com cinco meninas palrando alegremente como passarinhos na Primavera. Olhas para cima e sentes a leve vertigem de uma cúpula profunda, qual catedral gótica.
E pões-te a escrever. Escreves com a caneta mais leve que antes, com palavra e formulações mais próximas.

Lá fora

Escuto-te cedo hoje, criança feia
Que choras junto à janela.
Olhas a chuva lá fora
E ficas sentada,
Com os dedos no colo.
A janela são os teus olhos,
E chove lá fora.