segunda-feira, maio 29, 2006

Ainda mal o sol nascera

Sinto desde há muito uma predisposição para a celebração e para o ritual, não tanto para as celebrações historico-sociais (que dessas permaneço relativamente ileso aos 31 anos, na minha armadura de ignorância e indiferença feita), mas antes para as celebrações e rituais da minha vida pessoal. Celebrações essas que ornamento com pretextos descartáveis e de que resultam algumas frestas luminosas na alma. Facto estranho é que desde o início deste ano, acordo em cada santo dia com a sensação de que algo há a celebrar, embora não me ocorra de que se trata. Será que algúem faz anos hoje? Quase sempre me lembro do aniversário de alguém que poderá até já poucas vezes pisar o palco dos meus dias para além de oníricas representações da Nostalgia. Outras vezes é o primeiro noticiário da manhã que me dá a resposta: - «Hoje é dia mundial da poesia! ou da música!da Europa! do trabalhador!». Ou fico a saber que é o mês do coração, que começaram os saldos ou a época balnear. Hoje por exemplo, fiquei a saber que é dia 25 de Abril! Quando me escapo ao noticiário, descubro que é dia de tomar uma decisão importante, de partir um prato, de chegar a horas ao trabalho: uma sensação constante de compromisso latente que pretendo decifrar.
Também as celebrações historico-sociais deveriam reflectir a sua própria essência abrindo frestas na alma do povo e brechas nos ocos discursos que nos enchem os noticiários e secam a paciência.
Mas que conhecimento tenho eu da revolução de Abril? Que ocorreu uns meses antes do meu nascimento (outro evento que também revolucionou bastante a minha vida!), pouco mais. Vasculho o sótão e encontro alguns fragmentos dispersos das aulas de história dos últimos anos do liceu, de uma ou outra leitura que abordou o assunto, de meia dúzia de fontes que foram pontuando o desenvolvimento da minha opinião sobre a revolução dos cravos – tem cravos! Lembro-me de um cartaz em que uma menina coloca um cravo no cano de uma espingarda segura por um braço fardado, por cima: «25 de Abril». Era um cartaz que via com bastante frequência quando era criança e que, se me intrigava na altura, pouco melhor o compreendo agora. Consigo encontrar este cartaz na net, é estranho mesmo. A menina que não tem mais de três anos apoia a mão direita no carregador da G3 esticando-se para colocar com a mão esquerda um cravo no cano da arma, que é segura não por um braço como recordo, mas por três braços com três fardas diferentes – cada detalhe terá sido cuidadosamente encenado num simbolismo de que só alcanço o ridículo. No 11º ano, que frequentei em regime noturno, tive um professor que me cativou bastante pela forma como transmitia a sua visão analítica da actualidade que ilustrava com inúmeros relatos das viagens da sua vida, sempre tendo como ponto de partida a matéria curricular que ganhava assim os contornos tridimensionais da compreensão. Sujeito bem interessante com quem desenvolvi uma empatia mútua mas descrompometida. Não se referia ao 25 de Abril pelas suas virtudes. Das suas considerações retive que, mais que o início iluminado de uma nova era, foi o culminar de uma situação que se tornou incomportável, representando em muitos casos pouco mais que uma inversão dos circuitos de perseguição e trespasse de poder. Não tenho dúvidas de que a Revolução desempenhou uma importante função de libertação e emancipação da sociedade portuguesa – a perseguição, censura e exílio de políticos e artistas juntamente com a manipulação do ensino mantinham a estabilidade do país ao ponto da estagnação. Libertar-nos da estagnação é a principal promessa do 25 de Abril.
Não deixo de sentir que há uma face escondida da Revolução – bem mais borbulhosa que a da menina no cartaz. Nesse sentido me levam as leituras que fiz de António Lobo Antunes, em particular do «Manual dos inquisidores» que relata a vida de quem se viu saqueado pela revolução.
Uma frase que ouvi um destes dias na TV: «no estudo da história há quem queira saber a verdade e há quem queira tirar proveito» - talvez se possa dizer o mesmo das revoluções.
Descontando estes impulsos esporádicos de reflexão e investigação, esta data resume-se normalmente a saber que farda vou ter de vestir, se fico em casa ou saio para ouvir as bandas que os responsáveis autárquicos mantém na rua para alegrar a malta e mostrar a vitalidade do 25 de Abril e refrear anseios de nova revolução.
Mas este ano não é um ano normal para mim. Sinto vontade de comemorar o 25 de Abril: - Viva o 25 de Abril! Viva Portugal! Viva a Liberdade! – pego nas palavras da Revolução e faço-as detonar no meu dia.
Revolucionar é mudar radicalmente, é ser abrupto. A questão que deixo é a seguinte: Porque se deixou chegar ao ponto em que é necessário revolucionar? Revolução é também união, sintonia, traição e bluf. – eu avanço se tu avançares primeiro, se todos avançarem. A questão é que este tipo de coesão social necassário a uma revolução surge quase sempre sob uma liderança oportunista e motivações contaminadas em que os valores e as verdades caem na boca errada ficando reduzidos a instrumentos de manipulação e negociação de vontades alheias e sonhos voláteis.
Dizendo de outro modo, revolucionar poderá não ser sinónomo de coragem mas antes de cobardia partilhada. Como seria o mundo se cada um gerasse as suas próprias revoluções injectando coragem e sabedoria na sua vivência diária. Não haveria Ditadura sem submissão e compromissos cobardes ou levianos.
Deixo-vos com Jorge Palma e o tema: «Picado pelas abelhas» - mais do que uma canção é uma verdadeira crónica musicada, feliz no manuseio da ambiguidade – como uma crónica deve ser.
http://aristoteles.podOmatic.com/entry/2006-05-29T17_06_56-07_00